Método START: triando múltiplas vítimas
Você socorrista ou futuro socorrista
já se imaginou ou já passou por uma cena de um acidente com múltiplas vítimas?
Nesses anos
de profissão e atuação em ambiente pré-hospitalar, já passei por algumas
situações como essa e posso afirmar com toda a certeza do mundo que a calma e o
conhecimento se fazem essenciais quando tudo o que encontramos representa um
caos.
Primeiro
precisamos ter certeza de que a cena encontrada é realmente um acidente com
múltiplas vítimas (AMUVI): ele pode ser definido como uma ocorrência com duas
ou mais vítimas ou um incidente em que há um desequilíbrio entre a necessidade
de cuidados médicos e os recursos disponíveis. Porém, é
possível a manutenção de uma qualidade de atendimento com os recursos locais e,
nesses casos, não existe a necessidade de ajuda externa.
Em
situações como essas, utilizamos algumas definições um pouco diferentes das
encontradas em Medicina de emergência, tomando como prioridade conceitos
ditados pela Medicina de desastres. Existem algumas diferenças básicas entre as
duas abordagens: a Medicina de emergência tem como prioridade salvar a vítima
mais grave enquanto que a Medicina de desastres possui como meta principal o
salvamento do maior número de vítimas possível. Nessa última
modalidade, portanto, nem sempre a vítima mais grave terá prioridade de
atendimento.
Podemos
deixar essa relação mais clara por meio do seguinte exemplo: ao ser atendido em
um setor de emergência de uma unidade hospitalar, um paciente em Parada Cardiorrespiratória
tem prioridade de atendimento (Medicina de emergência), enquanto que em um
acidente com múltiplas vítimas, um paciente com o mesmo quadro é considerado
irrecuperável e não tem prioridade de atendimento (Medicina de desastres).
A
diferença da abordagem entre as duas situações se justifica visto que em um
AMUVI nós socorristas devemos nos concentrar em salvar o maior número de vidas
possível e o tempo gasto com uma vítima irrecuperável pode fazer com que
vítimas graves, porém recuperáveis, evoluam para um estado irreversível. Por exemplo: pela demora do atendimento, uma pessoa
que apresente uma hemorragia séria pode vir a evoluir para uma Parada
Cardiorrespiratória caso não sejam tomadas medidas de controle de hemorragia e
reposição volêmica, vindo essa a se tornar uma vítima também irrecuperável.
Desde
o século XIX, já se pensava em conceitos de Medicina de desastres. Durante as
Campanhas Napoleônicas que aconteceram de 1803 a 1815, o principal cirurgião do
exército de Napoleão Bonaparte, General Dominique Jean Larrey (1766-1842),
desenvolveu a base teórica e aplicou a triagem dos feridos de guerra. Sua contribuição mais conhecida foi a criação
da “ambulância voadora”, a primeira ambulância que se teve notícia na história.
Ela se locomovia por tração animal e
dispunha de uma maca e material para hemostasia (contenção de sangramentos) na
qual o General Larrey se deslocava até o front de batalha para atender os
feridos de guerra. Nessa ocasião,
dava-se prioridade de atendimento aos soldados que apresentavam ferimentos
leves a moderados (recuperáveis) e, após o tratamento, os mesmos eram levados
de volta ao “front”, visto que a perda de militares em uma guerra pode levar o
exército à derrota. (J. M. Orlando, Vencendo a morte: como as guerras fizeram a
medicina evoluir.)
O que é START?
A
triagem nessas circunstâncias tem como objetivo racionalizar e organizar a
atuação das equipes de socorristas por meio do estabelecimento de prioridades,
tanto de atendimento quanto de transporte a uma unidade hospitalar para
tratamento definitivo. Pensando nisso,
podemos concluir que a não realização de triagem prolonga o tempo no incidente
e atrasa o tratamento definitivo, diminuindo o número de sobreviventes e
causando um desperdício de transporte assim como hospitalizações desnecessárias.
O
método de triagem mais utilizado em ambiente pré-hospitalar no que diz respeito
aos AMUVI’s atualmente é o método Simple Triage And Rapid Treatment (START), que, traduzindo para o português, significa Triagem Simples e Tratamento Rápido Ele foi criado em 1983 na Califórnia (EUA)
pelas equipes do Hoag Hospital e Newport Beach Fire Department, com o objetivo
de atribuir prioridades de atendimento às vítimas de AMUVI’s de forma fácil e
rápida, sendo possível triar cada uma em
até 60 segundos.
Para utilizar esse método, avaliamos
quatro parâmetros: via aérea, padrão ventilatório, padrão circulatório e
resposta a comandos simples. Fica fácil
se lembrarmos do mnemônico ABCDE do Trauma:
A – Controlar a
coluna cervical e fazer manutenção de vias aéreas pérvias
B – Avaliar o
padrão respiratório e o processo de ventilação
C – Avaliar o
padrão circulatório e controlar hemorragias
D – Fazer a
avaliação neurológica
E – Expor as
vestes da vítima nos locais lesionados e fazer a prevenção de hipotermia
Após
a avaliação de cada vítima, atribuímos às mesmas cores que identificam a
prioridade de atendimento e evacuação (transporte) para a unidade hospitalar. São elas: vermelho, amarelo, verde e preto. De
uma forma geral, as vítimas classificadas com a cor vermelha são aquelas que apresentam ferimentos graves, porém que
tem bom prognóstico de sobrevida como, por exemplo, uma hemorragia grave. As
vítimas classificadas com a cor amarela
são aquelas que apresentam ferimentos moderados como, por exemplo, fraturas de
membros. São representadas pela cor verde
as que possuem ferimentos leves como, por exemplo, escoriações e contusões e
que podem ser atendidas a nível ambulatorial. Já as vítimas classificadas com a
cor preta, são definidas como
irrecuperáveis, ou seja, aquelas que apresentam ferimentos incompatíveis com a
vida (decapitação por exemplo) e as em Parada Cardiorrespiratória, casos em que
mesmo com todos os esforços da equipe o prognóstico permanece sombrio e a
chance de sobrevida remota.
Segue abaixo o fluxo de avaliação:
O
primeiro passo é identificar as vítimas que deambulam (andam). e que,
portanto, são classificadas com a cor verde.
Tendo
feito isso e separado as vítimas verdes, podemos passar para o próximo passo
que é avaliar as que não são capazes de deambular, da seguinte forma:
determinamos primeiramente se a vítima respira; se ela não respira, realizamos
então uma manobra para a abertura da via aérea e se, mesmo após a realização da
manobra, a vítima ainda não respira, ela será classificada com a cor preta. Essa vítima é considerada então
irrecuperável e não tem prioridade de atendimento. No entanto, se após a
realização de manobra de abertura de via aérea essa vítima volta a respirar,
nós a classificamos com a cor vermelha. Essa vítima então tem “prioridade 1”, tanto de
atendimento quanto de transporte para uma unidade hospitalar.
Nos casos em
que encontramos a vítima respirando espontaneamente, nos atemos a avaliar a
função ventilatória da mesma por meio da frequência ventilatória. Pessoas que apresentam acima de 30 ou abaixo
de 10 incursões respiratórias por minuto (IRPM), são classificadas com a cor vermelha, prioridade 1 de atendimento e
transporte. Já nos casos em que a frequência
ventilatória está abaixo de 30 e acima de 10 IRPM, passamos a avaliar um outro
parâmetro: a função circulatória, por
meio do tempo de enchimento capilar. Para avaliar esse fluxo sanguíneo, é utilizada
uma técnica em que se pressiona a ponta dos dedos ou lábios e é contado o
período necessário para que o sangue retorne totalmente ao local pressionado.
Vítimas que apresentam um tempo de enchimento capilar maior que 2 segundos são classificados
com a cor vermelha e têm prioridade
1 de atendimento e transporte. Se a
vítima apresenta tempo de enchimento capilar menor que 2 segundos, podemos
passar para a avaliação do próximo parâmetro que é a reposta a comandos
simples.
A avaliação
da resposta a comandos simples nada mais é que uma avaliação simplificada da
função neurológica da vítima, que é feita da seguinte forma: pede-se que a
vítima realize uma tarefa simples como apertar a mão, piscar os olhos ou erguer
um membro. É claro que fazemos um pedido
de acordo com a capacidade da pessoa em realizar tais tarefas, visto que ela
pode apresentar lesões nos membros que a incapacitam de realizá-las, mesmo que
a sua função neurológica esteja intacta. Nessa etapa, pedimos então que a vítima
realize uma tarefa simples. Atribuímos àquelas
que não são capazes de responder ao comando a cor vermelha e as classificamos como prioridade 1 de atendimento e
transporte. No entanto, se a mesma for capaz
de obedecer a comandos simples, é então identificada com a cor amarela e prioridade 2 de atendimento e
transporte.
Ao longo de
todo esse processo de atendimento, alguns materiais são utilizados para separar
e identificar as vítimas de acordo com a sua classificação, a fim de facilitar
e organizar o atendimento das equipes de socorristas, tais como: lonas para
alocação das vítimas, coletes para identificação dos socorristas atuantes em
cada grupo classificado e crachás para identificação das vítimas. Ter conhecimento dos materiais e métodos
utilizados para auxiliar esses pacientes é essencial para que o socorrista
possa concentrar sua atenção em prestar o atendimento correto e salvar vidas.
Vimos que
para que a atuação em um AMUVI seja efetiva, é necessária muita calma e isso só
é possível por meio de conhecimento que advém de capacitação constante. Com
conhecimento e calma, o fim de um atendimento, seja ele com uma ou diversas vítimas,
tem um sentimento de dever cumprido de quem conseguiu salvar vidas.
Referências:
NATIONAL ASSOCIATION OF EMERGENCY MEDICAL TECHNICIANS. PHTLS: atendimento pré-hospitalar ao traumatizado. 8. ed. Burlington: Jones & Bartlett Learning, c2017.
Enfermeira Emergencista
RT da Empresa GOTT Treinamentos
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